sexta-feira, 3 de setembro de 2010

A MÁQUINA DO MUNDO (Os Lusíadas X, 75-91)

Sumário para situar o blogonauta

1. Big Bang (Sumário)
2. História milenar (Mitos da criação e começo da ciência com os gregos)
3. Modelo geocêntrico e o aperfeiçoamento do Telescópio
4. Teólogos, filósofos, poetas e astrónomos em debate
5. Máquina do Mundo (Lusíadas, Canto X)
6. Papel de Os Lusíadas na evolução científica
7. Os avanços a partir de Copérnico (modelo geocêntico) e de Galileu (aperfeiçoamento da "medição")
8. Medição das distâncias astronómicas (Cefeidas)
9. Lei de Hubble, que apresenta provas experimentais da expansão do Universo
10. Modelos teóricos, que partem todos da Teoria da Relatividade
11. Modelo de Einstein
12. Modelo de Friedmann-Lemaître.

Maravilhas do Espaço: uma imagem por post


Comentar Camões
É ditado corrente que só deve falar de Camões quem é um verdadeiro especialista no nosso maior poeta. O que não é o meu caso. De qualquer maneira, todos podemos falar, mesmo sem ser especilistas, do que faz parte da nossa culura como povo.

Camões por FERNÃO GOMES (1577?)
cópia de Luís de Resende, considerado o mais autêntico retrato do poeta, cujo original, que se perdeu, foi pintado ainda em sua vida.

Daí que me atreva a fazer umas anotações que fui retirando daqui e dali sobre Camões, neste contexto da nossa caminhada à descoberta do Universo.
No Canto X de Os Lusíadas, Camões põe Tétis a descrever a “máquina do mundo” de acordo com os conhecimentos da época. Eu vou começar por transcrever e comentar as estâncias deste episódio e numa segunda parte enquadrá-lo no contexto da epopeia. Acrescentei "títulos" às estâncias que iniciam a descrição de uma das partes do Universo, títulos que não fazem parte da obra original. Segui a ortografia da edição da Porto Editora, pela qual muitos alunos estudaram Os Lusíadas. No final de cada estância faço alguns comentários sempre que julgue oportuno. Destaco a negrito o que Camões escreveu. O leitor pode assim ficar-se pela epopeia e não se perder com os comentários.

iIustração da edição de 1639 de Faria e Sousa.



75. SUBIDA AO MONTE
Despois que a corporal necessidade
Se satisfaz do mantimento nobre
E, na harmonia e doce suavidade
Viram os altos feitos que descobre,
Téthys, de graça ornada e gravidade,
Pera que com mais alta glória dobre
As festas deste alegre e claro dia,
Pera o felice Gama assi dizia:

1.Os dois primeiros versos são a repetição de uma formulação homérica:
Αύτάρ έπεί πόσιος καί έδητύος έξ έρον έντο (Ilíada I,469; Odisseia, IV,68;…)
Quando afastaram o desejo de comida e de bebida.
Virgílio também a utilizou:
Postquam exempta fames epulis mensaeque remotae (Virgílio, Eneida I, 215)
Depois de satisfeita a fome por esta refeição e levantadas as mesas.
2.Descobre – que(m) é o sujeito deste verbo? A Ninfa está muitos versos para trás; subentendido “ela” (“a harmonia e doce suavidade” do canto de Tétis)
3.Dobre (6) – aumente.
4.Claro (7) – ilustre, digno de perene lembrança. Trata-se de um latinismo, clarus, “importante, ilustre”, daí vem o nosso preclaro (pré- prefixo de superlativização).

76. Faz-te mercê, barão, a Sapiência
Suprema de, cos olhos corporais,
Veres o que não pode a vã ciência
Dos errados e míseros mortais.
Sigue-me firme e forte, com prudência,
Por este monte espesso, tu cos mais."
Assi lhe diz, e o guia por um mato
Árduo, difícil, duro a humano trato.

1.Barão (1) - varão; etimologicamente vem do germânico *baro, "homem livre", nome introduzido na România por mercenários nórdicos sob as formas latinizadas baro e var(r)o, com o significado do lat. vir, "homem, indivíduo do sexo masculino, por oposição a mulher". Depois passou ao francês baro, com a acepção de "funcionário real" (séc.X) e daí a ideia de "grande senhor do reino" a que logo se junta a ideia de nobreza e daí "homem nobre que possui uma baronia". Aqui significa apenas homem-macho.
2.Sapiência / Suprema (1-2) – Deus.
3.errados (4) – que se enganam.
4.Por este monte espesso (6) – simboliza o longo trabalho de pacientes observações e laboriosos cálculos que a inteligência humana teve que transpor para explicar a mecânica celeste.
5.Árduo,… (8) – características do caminho árduo que talvez simbolize a ignorância que há a vencer para atingir o conhecimento.

óleo de Carlos Alberto Santos


77. ESFERA CELESTE
Não andam muito que no erguido cume
Se acharam, onde um campo se esmaltava
De esmeraldas, rubis, tais que presume
A vista que divino chão pisava.
Aqui um globo vem no ar, que o lume
Claríssimo por ele penetrava,
De modo que o seu centro está evidente,
Como a sua superfície, claramente.

1.que (1) – quando.
2.pisava (4) – pisavam (apócope), põe exigências da rima.
3.vem (5) – vêem.
4.o lume / claríssimo … penetrava (5-6): a luz forte penetrava no globo; isto é, o globo era transparente.


Começa a descrição do Universo segundo as últimas alterações feitas ao modelo de Ptolomeu, partindo de “fora” para “dentro”.


78. MODELO DE PTOLOMEU
Qual matéria seja não se enxerga.
Mas enxerga-se bem que está composto
De vários orbes, que Divina verga
Compôs, e um centro a todos só tem posto,
Volvendo, ora se abaxe, agora se erga,
Nunca se ergue ou se abaxa, e um mesmo rosto
Por toda a parte tem; e em toda a parte
Começa e acaba, enfim, por divina arte,

1.Qual matéria (1) – para Aristóteles, as esferas celestes eram formadas de uma matéria diferente dos corpos sublunares; uma matéria cuja natureza não era conhecida: a quintessência.
2.orbes (3) – Esferas ou céus que, na concepção ptolomaica, se encontram a seguir às esferas do Ar e do Fogo, concêntricas com a Terra no centro. Camões utiliza indiferentemente orbes, esferas e até estrelas, conforme as exigências da métrica.
3.verga (3) – vara, poder; do lat. virga, “vara que simboliza o poder”. É a primeira vez que surge em português com esta acepção e deve ter como fonte Ariosto, em Orlando Furioso XVII, 79:
Tu, gran Leone, a cui premon te terga             
de la chiavi del ciel le gravi some                     
non lasciar che nel sonno si sommerga             
Italia, se la man l’hai n ele chiome.                    
Tu sei Pastore; e Dio t’há quella verga             
data a portare, e scelto il fiero nome,               
perché tu ruggi, e che le bracchia stenda,         
si che dai lupi il grege tuo difenda.          
Tu, grande Leão (X), a quem foi acometida
das chaves do céu a grande missão
não deixes contiuar adormecida
a Itália, cujos cabelos tens na mão.
Tu és Pastor; e Deus deu-te esta vara decidida
que levas e te deu uma orgulhosa denominação
para que o teu brado e os teus braços estendas
de modo que o teu rebanho dos lobos defendas.

4. volvendo (5) – para alguns, não se refere ao movimento, mas sim “tendo a forma de abóbada” (do ital. volta), que, por toda a parte, o globo apresenta aos olhos: “um mesmo rosto / por toda a parte tem” (6-7); para outros, interpretam no sentindo de girando.
5.vv 5-7 – Camões faz aqui um trocadilho com os verbos abaixar e erguer, que utiliza em sentidos diferentes:
- no v. 5: a superfície do globo, quer (ora) ela desça (se abaxe), vista do Equador para o Pólo Austral, quer (agora) suba (se erga), vista do equador para o Pólo Boreal;
- no v. 6: nunca se ergue ou se abaixa = (quer num quer noutro hemisfério: v.5), em lado nenhum apresenta a menor elevação ou depressão;
- vv. 6-7 – o globo é rigorosamente esférico em todos os lugres (“em toda a parte”).
Portanto, aquele globo, “girando” ou “tendo a forma de abóbada” apresenta sempre a mesma curvatura (“nunca se ergue ou se abaxa”). Camões deve ter-se inspirado em Virgílio (Geórgicas I, 240-243):
Mundus, ut ad Scythiam Ripheasque arduus arces
Consurgit, premitur Lybiae devexus in austros.
Hic vertex nobis simper sublimis; ad illum
Sub pedibus Styx atra videt Manesque profundi.
Assim como o mundo até à Cítia e às abruptas montanhas Rifeias
se ergue, (também) se abaixa para a Líbia inclinada ao sul.
Este Pólo (Norte) está sempre elevado acima de nós; enquanto o outro (Pólo Sul),
sob os nossos pés, vê o Estige e os deuses inferiores.
      Rifeias – montanhas indeterminadas situadas a Norte do mundo conhecido.
      Estige – rio dos Infernos, que aqui está pelo próprio Inferno.
      sob os nossos pés – o Pólo Sul estava escondido dos olhos de Virgílio.
Máquina do Mundo segundo Camões
Fonte: Os Lusíadas (Porto Editora) p. 515

Segundo a cosmografia corrente no tempo de Camões, o modelo incluía 11 esferas, incluindo o Empíreo, que não era propriamente considerado uma esfera.
Até Ptolomeu eram oito: Lua, Mercúrio, Vénus, Sol, Marte, Júpiter, Saturno e Estrelas fixas.
Novas observações obrigaram à introdução de novas esferas.
Com a descoberta da precessão dos equinócios foi necessário introduzir uma nova esfera para o movimento diurno (nona), ficando a oitava com a precessão dos equinócios.
Mais tarde, para explicar a “trepidação” (movimento oscilatório da precessão) introduziu-se uma outra esfera, a nona, o Secundum Mobile ou Cristalino, passando para a décima o movimento que pertencera inicialmente à oitava e depois à nona. Finalmente foi criado o Primum Mobile e, no século XI, S.to Anselmo introduziu o Empíreo.


79. MÁQUINA DO MUNDO
Uniforme, perfeito, em si sustido,
Qual, enfim, o Arquetipo que o criou.
Vendo o Gama este globo, comovido
De espanto e de desejo ali ficou.
Diz-lhe a Deusa: "O trasunto, reduzido
Em pequeno volume, aqui te dou
Do Mundo aos olhos teus, pera que vejas
Por onde vás e irás e o que desejas.

1.Uniforme (1) – homogéneo, por ter uma superfície perfeitamente esférica.
2.em si sustido (1) – funcionando por si só, sem intervenção externa; ou também pode referir-se simplesmente ao facto de o globo estar suspenso no ar, sem apoio externo.
3.Arquetipo (2) – palavra grave neste verso. Para uns significa Modelo (do lat. archetypus, "original, modelo") = Deus; para outros, trata-se da imagem mental (arquétipo) ou plano divino segundo o qual tudo foi criado, utilizando a maiúscula por se tratar de um plano de Deus.
4.Trasunto (5) – transunto; cópia. Trasunto, reduzido … = miniatura.

Aqui Camões segue a sua principal fonte o “Tratado da Esfera” de Pedro Nunes que diz: “Universalis autem mundi machina in duo dividitur, in aetheream scilicet et elementarem regionem” (“a universal máquina do mundo divide-se em duas regiões: a etérea e a elementar”). Camões descreve os quatro elementos em IV,10-12.


Editado em Lisboa, a 1.Dez.1537, compõe-se de duas partes:
1. Traduções anotadas:
- Tratado da Esfera, (De Sphera) de J. Hollywood, cujo nome foi latinizado para Sacrobosco (1472);
- Theorica do Sol e da Lua (Theoricae novae planetarum) de Purbáquio (1460);
- Livro primeiro da Geographia de Ptolomeu (séc. II).
2. Originais:
- Tratado sobre certas dúvidas de Navegação (1534), no qual descreve pela primeira vez as curvas loxodrómicas, ou "línhas de rumo" que cortam os meridianos sempre segundo o mesmo ângulo. São muito cómodas para navegar, já que basta manter um rumo fixo na bússola. Deram um contributo importante para o desenvolvimento das projecções de Mercator, um modo de representação das coordenadas espaciais relativas às três dimensões do globo terrestre num planisfério de duas dimensões;
- Tratado em defensam da carta de Marear, e as Taboas do movimento do Sol e sua declinação (1537).


80. PARTES ETÉREA E ELEMENTAR DA MÁQUINA DO MUNDO
Vês aqui a grande Máquina do Mundo,
Etérea e elemental, que fabricada
Assi foi do Saber, alto e profundo,
Que é sem princípio e meta limitada.
Quem cerca em derredor este rotundo
Globo e sua superfície tão limada,
É Deus: mas o que é Deus, ninguém o entende,
Que a tanto o engenho humano não se estende.

1.Etérea e elemental (1) – referência aos dois mundos: sublunar e celeste. O sublunar é feito dos quatro elementos (terra, ar, água e fogo) (“elemental”), enquanto a região superior e não-elementar, mas formada de “éter” (“etérea”).
2.do Saber (3) – do (= por) agente da passiva.
3.vv 3-4 – Deus (perífrase): poderá suspeitar-se aqui de uma espécie de panteísmo, que se basearia na afirmação de S.to Anselmo: “ex quo et per quem et in quo sunt omnia”. Mas Camões foge à questão de dizer como afirmando claramente que Deus é incompreensível (“ninguém o entende”, nem “a tanto o engenho humano se estende”). Aliás S. Paulo fala, em 1Col 1,16-20, da recapitulação de tudo (τά πάντα aparece 4 vezes) em Cristo. E na celebração eucarística, temos o “Por Cristo, com Cristo, em Cristo”.
4.limada (4) – lisa, sem rugas.
5.que (8) – causal.

Começa a especificação das esferas que formam a parte etérea.

81.O EMPÍREO (COELUM EMPEREUM)
Este orbe que, primeiro, vai cercando
Os outros mais pequenos que em si tem,
Que está com luz tão clara radiando,
Que a vista cega e a mente vil também,
Empíreo se nomeia, onde logrando
Puras almas estão daquele Bem
Tamanho, que ele só se entende e alcança,
De quem não há no mundo semelhança.

1.Este orbe que, primeiro - latinismo: “Este orbe primeiro, que”.
2.Tem – contém.
3.vil (4) – de pouco valor (do lat. vilis) relativamente às criaturas celestes.
4.logrando (5) - usufruindo
5.Puras almas (6) – no Empíreo estavam as almas que tinham ascendido ao Paraíso.
6. Bem / Tamanho (6-7) – Deus
6. vv. 6-7 – Só Deus é capaz de se entender a si mesmo.

82. Aqui, só verdadeiros, gloriosos
Divos estão, porque eu, Saturno e Jano,
Júpiter, Juno, fomos fabulosos,
Fingidos de mortal e cego engano.
pera fazer versos deleitosos
Servimos; e, se mais o trato humano
Nos pode dar, é só que o nome nosso
Nestas estrelas pôs o engenho vosso.

1.Divos (2) – santos.
2. de mortal (4) - de (= por) agente da passiva.
3.trato humano (6) – sociedades, culturas humanas.
4.estrelas (8) – no sentido lato: estrelas, constelações, planetas.
Esta é uma estância notável na economia do poema: as divindades pagãs proclamam a sua própria falsidade: “só servem para fazer versos deleitosos” (5) e para que as várias culturas dêem o seu nome às constelações (7-8). Com estes vv. Camões rejeita toda a mitologia pagã como real.

83. E também, porque a Santa Providência,
Que em Júpiter aqui se representa,
Por espíritos mil, que tem prudência,
Governa o Mundo todo que sustenta
Insina-lo a profética ciência,
Em muitos dos exemplos que apresenta:
Os que são bons, guiando, favorecem,
Os maus, em quanto podem, nos empecem.

1.têm prudência (3) - são invisíveis e experientes.
2.Insina-lo (5) – ensina-no-lo (haplologia)
3.profética ciência (5) – Sagrada Escritura
4.em quanto podem (7) – dentro dos limites impostos por Deus. Confrontar com o Livro de Job, no qual Deus permite a Satanás tentar Job sob certas condições: “Pois bem, tudo o que ele possui está à tua disposição, mas não estendas a mão sobre a sua pessoa” (1,12).

84. Quer, logo aqui a pintura, que varia,
Agora deleitando, ora insinando,
Dar-lhe nomes que a antiga Poesia
A seus Deuses já dera, fabulando;
Que os Anjos da celeste companhia
Deuses o sacro verso está chamando;
Nem nega que esse nome preminente
Também aos maus se dá, mas falsamente.

1.logo (1) – conj. coord. conclusiva = portanto.
2.pintura que varia (1) – Poesia.
3.lhe (3) – lhes: aos espíritos evangélicos que, em nome de Deus, governam o mundo.
4.sacro verso (6) – Sagrada Escritura.
5.vv. 5-8 – Camões explica por que chama os Anjos com nomes de deuses pagãos: também a Sagrada Escritura (“sacro verso”) faz o mesmo.


85. DÉCIMA ESFERA - PRIMUM MOBILE
Enfim que o Sumo Deus, que por segundas
Causas obra no Mundo, tudo manda.
E tornando a contar-te das profundas
Obras da Mão Divina veneranda:
Debaxo deste círculo onde as mundas
Almas divinas gozam, que não anda,
Outro corre, tão leve e tão ligeiro,
Que não se enxerga: é o Mobile primeiro.

1.Enfim (1) – em suma, em resumo.
2.vv. 1-2 – estes versos teologicamente muito significativos exprimem a ideia de que quaisquer agentes que actuam no mundo são apenas instrumentos (“causas segundas”) de Deus que é quem tudo dispõe primária e absolutamente (Causa Primeira).
3.profundas (3) – latinismo: “altas, elevadas”. Por exemplo, “coelumque profundum” (Virgílio, Geórgicas IV,222).
4.mundas (5) – puras, limpas (do lat. ficou-nos a palavra antagónica “i-mundo”, sujo, não limpo).
5.que (6) – tem por antecedente círculo (5).
6.não anda (6) – o Empíreo, que é imóvel, não tem qualquer movimento: “Coelum autem empyreum non est mobile” (S. Tomás de Aquino, Summa Theologica I,66,3).
7.Que não se enxerga (8) – anda tão devagar (“tão leve e tão ligeiro”) que não conseguimos descobrir que ele se move.
8.Mobile primeiro (8) – a 10ª esfera, denominada Primum Mobile, que roda rapidamente (dá uma rotação cada 24 horas) e arrasta todas as outras: ver na estância seguinte "com este ... movimento vão todos os que dentro tem no seio". Pedro Nunes traduz Sacrobosco, no Tratado da Esfera: “Mas o primeiro movimento [“o Móbile primeiro”] move e leva com seu ímpeto todas as outras esferas e num dia com a sua noite fazem em redor da terra uma revolução.”


86. NONA ESFERA - CRISTALINO OU SECUNDUM MOBILE
Com este rapto e grande movimento
Vão todos os que dentro tem no seio;
Por obra deste, o Sol, andando a tento,
O dia e noite faz, com curso alheio.
Nona Esfera: o Cristalino ou Secundum Mobile
Debaxo deste leve, anda outro lento,
Tão lento e sojugado a duro freio,
Que, enquanto Febo, de luz nunca escasso,
Duzentos cursos faz, dá ele um passo.

1.rapto (1) – substantivo e não adjectivo, é um termo técnico que designa o movimento de rotação que o Primum Mobile (PM) imprime às esferas nele contidas. G. Reisch em Margarita Philosophica (1508) explica: “Coelum decimum… illo motu secum rapit omnes spheras inferiores” (O décimo céu, movendo-se por ele próprio, arrasta consigo todas as esferas inferiores). Estas, apesar do seu movimento próprio ser de ocidente para oriente, são impelidas pelo PM de oriente para ocidente, completando a sua rotação em 24 horas.


2.grande (1) – indica a rapidez do movimento diurno; de todos os movimentos celestes este é o de maior velocidade.
3.a tento (3) – com regularidade.
4.com curso alheio (4) – com movimento do Sol, de que resulta o dia e a noite, não é um movimento devido ao Sol, mas ao PM.
5.deste (5) – PM.
6.leve (5) – ligeiro.
7.outro (5) – a nona esfera.
8. Febo (7) – Sol.
9.vv. 5-8 – a nona esfera movia-se tão lentamente que enquanto o Sol completa duzentos ciclos (anos), ela apenas roda um grau. Hiparco, em 160 aC, tinha reparado, comparando observações suas com outras feitas um século atrás, que alguma estrelas já não ocupavam o mesmo lugar mas se tinham deslocado em direcção ao Sol e concluiu que a esfera das estrelas se movia do ocidente para o oriente, o que fazia com que o Sol atingisse os pontos equinociais antes de estar alinhado com as mesmas estrelas de um século atrás. Isto é, os equinócios pareciam recuar porque a oitava esfera avançava. Este movimento, hoje chamado “precessão dos equinócios”, ficou conhecido por movimento dos auges e das estrelas fixas. Em 140 dC, Ptolomeu deduziu que este movimento seria de 1 grau por século, o que significava que uma revolução (ciclo) completa demoraria 36 000 anos (200 anos/grau x 360 graus (que tem uma circunferência) = 36 000 anos).
Entretanto, o astrónomo e matemático árabe Thabit ibn Qurra ou Thebit ben Chora (836-901) terá o primeiro a propor o movimento da trepidação para explicar as variações no movimento das estrelas fixas em relação aos equinócios, imaginando, em cada equinócio, um pequeno círculo, sobre cuja circunferência o equinócio verdadeiro se moveria com movimento uniforme. Tratava-se de uma versão grosseira do que hoje se designa por nutação (ver post ###).
Precessão dos Equinócios e "trepidação" (nutação)
Na figura da esquerda pode ver-se que hoje o eixo da Terra aponta para a Estrela Polar; no ano 14 000 dC aponatrá para a estrela Vega e no ano 3 000 aC apontava para uma outra estrela, cujo nome não consegui saber.

Pedro Nunes, que traduziu, para o seu Tratado da Esfera, o Tratado da Esfera de Sacrobosco, que defendia a posição de Ptolomeu (100 anos para andar 1 grau), fez a seguinte anotação: “Este movimento de ocidente para oriente pela ordem dos signos pertence à nona esfera e não é 100 anos um grau, mas em 200 anos um grau e 28 minutos, de sorte que em 49 mil anos se cumpre a revolução. E o movimento próprio da oitava é o da trepidação que se faz em 7.000 anos”.
O que Camões fez foi arredondar: em 200 anos anda 1 grau e não 1 grau e 28 minutos.
Portanto, o Firmamento (a oitava esfera) teria um movimento triplo:
- o movimento diurno das esferas pelo Primum Mobile: as estrelas dão uma volta completa por dia no firmamento, de oriente para ocidente;
- o movimento dos auges e das estrelas fixas pelo Secundum Mobile: um movimento regular mas muito lento, de ocidente para oriente, que demora 49 000 anos a dar uma volta completa;
- o movimento de trepidação da oitava esfera, movendo-se os pontos equinociais da oitava esfera sobre dois pequenos círculos na nona esfera, demorando 7 000 anos a percorrer um círculo.


87. OITAVA ESFERA - FIRMAMENTO: O ZODÍACO E OS DOZE SIGNOS
Olha estoutro debaxo, que esmaltado
De corpos lisos anda e radiantes,
Que também nele tem curso ordenado
E nos seus axes correm cintilantes.
Bem vês como se veste e faz ornado
Co largo Cinto de ouro, que estelantes
Animais doze traz afigurados,
Apousentos de Febo limitados.

1.estoutro debaixo – a 8ª esfera (Firmamento) onde existiam as estrelas (corpos lisos);
2.curso ordenado (3) – guardando sempre as mesmas distâncias entre si.
3.axes (4) – eixos (latinismo: “eixo, eixo do mundo; pólo, em particular o Pólo Norte)
4. de ouro (5) – epíteto muito do agrado dos Latinos para qualificar os astros: aureus sidera (céus), aurea astra, áurea luna.
Famosa é a expressão “Aurea Saturni saecula” ("a idade de ouro de Saturno”, um dos primeiros deuses, pai de Júpiter).
Alguns criticavam os imperadores por terem acabado com a idade de ouro, como Suetónio relativamente a Tibério, a quem acusa com palavras muito violentas:
“Non es eques, quare? non sunt tibi millia centum?
Omnia si quaeras, et Rhodos exsilium est...
Aurea mutasti Saturni saecula, Caesar;
incolumi nam te ferrea semper erunt...
Et dic, Roma perit: regnabit sanguine multo,
Ad regnum quisquis venit ab exsilio” (A vida dos Doze Césares, III. Tiberius Nero Caesar, LIX)
Não és um cavaleiro, pois não tens o suficiente para sê-lo.
Tudo queres, mas não passas de um desterado de Rodes...
Mudaste a idade de ouro de Saturno, ó César;
agora teremos de viver para sempre numa idade de ferro...
E agora, Roma, será destruída: reinará no meio de muito sangue
O que vem do desterro para o Reino". 

Outros acreditavam no retorno da idade de ouro com Augusto, como Virgílio:
Jam redit et Virgo, redeunt Saturnia regna (Bucólicas II, 6)
Já voltou a Virgem, já voltaram os reinos de Saturno.
A Virgem é Astreia, a Justiça, filha de Zeus e Témis, que habita na Terra durante a idade do ouro. Na idade do ferro, volta para o céu, tornando-se uma constelação (Geórgicas II,474).
Hic vir, hic est, tibi quem promitti saepius audis,
Augustus Caesar, Divi genus, aurea condet
saecula qui rursus Latio regnata per arva
Saturno quondam… (Eneida VII, 791-794)
Eis o homem, aqui está, aquele que tantas vezes ouves ser-te prometido
Augusto César, filho de um deus, ele recriará
a idade do ouro de novo no Lácio, pelos campos onde reinou
outrora Saturno…

Outros ainda “gozavam” com a ideia, como Ovídio:
Aurea sunt vere nunc saecula: plurimus auro
Venit honos: auro conciliatur amor (Arte de Amar, II, 277-278).
Agora é que é a verdadeira idade do ouro: muitos por ouro
Vendem a honra; pelo ouro se consegue o amor.

5.largo Cinto de ouro (6) – o Zodíaco
6.estelantes / Animais doze (6-7) – as doze constelações do Zodíaco (os Signos); nem todas têm nomes de animais, mas trata-se de uma liberdade poética.
7.aposentos de Febo limitados – o Sol está em cada um dos signos durante um mês apenas.

Ver na parte final a organização e o movimento das Estrelas Fixas.


88. CATÁLOGO DAS ESTRELAS DE CAMÕES
Olha, por outra parte, a pintura
Que as estrelas fulgentes vão fazendo
Olha a Carreta, atenta a Cinosura,
Andrómeda e seu pai, e o Drago horrendo.
Vê de Cassiopeia a fermosura
E do Orionte o gesto turbulento;
Olha o Cisne morrendo que suspira,
A Lebre e os Cães, a Nau e a doce Lira.

1.por outra parte – fora do Firmamento
2.a pintura / Que as estrelas (1-2) – figuras que as estrelas parecem formar no ar = constelações.
3.Correta (3) – Ursa Maior; aparece em Homero:
Άρκτον θ’, ήν καί άμαξαν έπίκλησιν καλέουσιν (Odisseia V,273)
a Ursa Maior, a que chamam o nome de Carro de quatro rodas. 
4.Cinosura (3) – Ursa Menor; “Cauda de Cão”, uma das ninfas que criou Júpiter em Creta e que foi depois colocada no céu.
5.Drago (4) – Dragão, constelação entre as duas Ursas.
6.Orionte (6) – Oríon (lat. Orion, oriontis): caçador que desrespeitou Diana e ela mandou-o para o céu estrelado.
7.Turbulento (6) – que traz chuvas e tempestades. Como não rima com fazendo (2) e horrendo (4), têm sido apontadas outras soluções (“vê tremendo”ou “metuendo”) que algum compositor teria alterado. Não parece muito provável, pelo que o mais certo é que Camões ou se distraiu ou preferiu sacrificar a rima por esta palavra lhe parecer a mais apropriada para esta constelação, que já os poetas romanos consideravam que trazia chuvas e tempestades. Até porque turbidus e turbulentus têm frequentemente a acepção de “tempestuoso”na tradição latina.
8.morrendo que suspira (7) – suspira ao morrer: para os mitólogos, o cisne solta um canto plangente ao morrer. Daí a nossa expressão “canto do cisne”.
9.vv. 7-8 – nomes de outras constelações. Camões nunca utiliza a palavra constelação.


89. CÉU DOS SETE PLANETAS
Debaxo deste grande Firmamento,
Vês o céu de Saturno, deus antigo;
Júpiter logo faz o movimento,
E Marte abaxo, bélico inimigo;
O claro Olho do céu, no quarto assento,
E Vénus, que os amores traz consigo;
Mercúrio, de eloquência soberana;
Com três rostos, debaxo vai Diana.

1.o claro (5) – brilhante.
2.Olho do Céu (5) – Já nos poemas homéricos, o Sol é o olho do céu.
3.Diana (8) – esta deusa é conhecida, no céu, como Lua; na Terra, como Diana; no mundo inferior, Hécate: “Hecate triformis” (Séneca): "diva triformis" (Horácio, Odes III, 22, 4).
4.três rostos (8) – porque apresenta três rostos: Lua Cheia, Quarto Crescente e Quarto Minguante; a Lua Nova é invisível.



90. DIFERENTES CURSOS DOS PLANETAS
Em todos estes orbes, diferente
Curso verás, nuns grave e noutros leve;
Ora fogem do centro longamente,
Ora da Terra estão caminho breve,
Bem como quis o Padre omnipotente,
Que o fogo fez e o ar, o vento e a neve,
Os quais verás que jazem mais adentro
E tem co mar a Terra por seu centro.

1.todos estes orbes (1) – os céus dos sete planetas.
2.nuns grave e noutros leve (2) – nuns lentos (Saturno é o mais lento) e noutros rápidos (Lua a mais rápida).
3.vv. 3-4 – supunha-se que os planetas teriam órbitas circulares (na realidade são elípticas com o Sol num dos focos), excêntricas em relação à Terra. Durante o seu curso tanto se afastam muito (fogem do centro longamente), como se aproximam da Terra (ora da Terra estão caminho breve).
Aqui coloca-se um problema. Haverá contradição com a estância 78, que afirma que Deus “um centro a todos só tem posto”?
Uma explicação “simples” para as diferentes distâncias a que se encontram as órbitas relativamente à Terra é supor que a órbita de cada planeta – considerada ainda circular por Copérnico – está incluída numa coroa circular. Durante a sua evolução, o planeta vai-se aproximando ora da parte externa ora da parte interna dessa coroa circular (esfera), de modo que o centro da sua órbita não é a Terra: assim, a sua órbita é excêntrica.
Pedro Nunes explica isto mesmo mas de modo mais elaborado. Vejamos o caso da “Teórica do Sol” por ser a mais simples, como a descreve L. Pereira da Silva, que parte da figura, abaixo, do lado esquerdo. A do lado direito serve apenas para uma melhor elucidação.

                    Teórica do Sol (Purbáquio)                  e        Clarificação por L. Pereira da Silva
A esfera do Sol contém três céus feitos de quintessência: os dois a negro, E e F (estas letras mal se notam na continuação da linha vertical), chamados deferentes do auge do Sol, e o que fica entre eles, a branco, chamado deferente do Sol, por cujo o meio corre o círculo CGD, percorrido pelo centro do Sol (G) no seu movimento anual. Este círculo é excêntrico, pois o seu centro (B) não coincide com A (Terra), de modo que, quando o Sol passa em C está no seu auge ou apogeu (maior distância da Terra) e, quando passa em D, está no perigeu (menor distância da Terra). O corpo do Sol que se vê em volta de G está embutido no céu intermédio, que é limitado por duas superfícies esféricas com centro comum (B). Este céu intermédio é que se move, deslizando de oriente para ocidente por entre os outros dois.
Para se compreender este movimento, imaginem-se fixos os dois céus, que são a parte negra da figura da esquerda: escorregando por entre eles, o céu intermédio dá uma volta inteira num ano, arrastando consigo o astro do dia. Por isso se chama deferente do Sol, explicando assim o seu movimento próprio anual.

Resumindo, estando a Terra em a, o Sol afasta-se e aproxima-se da Terra: no apogeu ou auge, está o mais longe possível do centro da Terra (e portanto mais próximo do Firmamento), e no perigeu está mais perto da Terra.

Primeira página da Teórica do Sol e da Lua de Purbáquio                           Ampliação

 A esfera do Sol é a coroa circular a negro. A coroa circular branca, dentro da negra, é o deferente do Sol, a que hoje chamaríamos trajectória do Sol. O ponto a é o centro da Terra, e b é o centro do deferente. O círculo interior a branco contém as esferas dos planetas inferiores ao Sol: Lua, Mercúrio e Vénus. Fora do círculo negro, ficam as esferas dos planetas superiores.

É agora claro que, na estância 90, apesar de todas as esferas serem concêntricas, com o centro no centro da Terra, o deferente, embora totalmente contido dentro da esfera, é excêntrico em relação ao centro da esfera, o que obriga cada planeta a estar ora perto ora longe da Terra.


91. DESCRIÇÃO DA TERRA, CENTRO DO UNIVERSO
Neste centro, pousada dos humanos,
Que não somente, ousados, se contentam
De sofrerem da terra firme os danos,
Mas inda o mar instabil exprimentam,
Verás as várias partes, que os insanos
Mares dividem, onde se apousentam,
Várias nações que mandam vários Reis,
Vários costumes seus e várias leis.

1.várias leis – várias religiões.



A oitava esfera (Firmamento) continha todas as estrelas fixas, organizadas em constelações. Segundo Pedro Nunes, "chamam-se [estrelas] fixas porque estão sempre a uma mesma distância de nós por estarem todas no mesmo céu, o oitavo”. Essas estrelas, em relação umas às outras, estão organizadas em grupos, as constelações.
Oficialmente em 1888 os astrónomos agruparam as estrelas e dividiram o céu em 88 constelações oficiais, com fronteiras precisas. Desta forma, cada direção no céu pertence necessariamente a uma, e apenas uma, delas. Elas foram baptizadas, em sua maioria, de acordo com a tradição proveniente da Grécia antiga e os seus nomes oficiais são sempre em latim.

Posição das constelações calculada para 16.Set.2010, às 3h 30m TU
Fonte: Astronomie Magazine, nº 216 (Set.2010), p. 63 
Camões, que não utiliza a palavra constelação, substitui-a por estrela, seguindo aliás os latinos para quem sidus, "constelação" também se utilizava para "estrela". É assim que descreve o Cruzeiro do Sul, descoberta pelos portugueses, que lhe deram o nome de Cruz, e a utilizavam para se orientar, no Canto V, 14:

Já descoberto tínhamos diante,
Lá no novo Hemisperio, nova estrela,
Não vista de outra gente, que ignorante
Alguns tempos esteve incerta dela.
Vimos a parte menos rutilante,
E, por falta de estrelas, menos bela,
Do Pólo fixo, onde inda se não sabe
Que outra terra comece, ou mar acabe.

1.Hemisperio (2) - o φ grego (ph) de hemispherion (ήμισφαίριον) foi representado em romanço unicamente por p.
2.nova estrela (2) - Cruzeiro do Sul.
3.por falta de estrelas (6) - considera o pólo celeste austral mais pobre de estrelas.
4.Pólo fixo (7) - o Pólo Sul, .

Curioso é o facto de Camões se referir ao movimento das estrelas em torno do Pólo como a um rebanho que sai todos os dias para pastar, no Canto II, 105:
Tu só, de todos quantos queima Apolo,
Nos recebes em paz, do mar profundo;
Em ti dos ventos hórridos de Eolo
Refúgio achamos bom, fido e jocundo.
Enquanto apacentar o largo Pólo
As Estrelas, e o Sol der lume ao Mundo,
Onde quer que eu viver, com fama e glória
Viverão teus louvores em memória.
 
1.de todos quantos quiema (1) - os povos do Equador; aqui, apenas os africanos da costa oriental.
2.hórridos (3) - latinismo, por horrendos.
3.fido e jocundo (4) - latinismos, por fiel e alegre.
4.Eolo (4) - aqui é uma palavra grave. Éolo é o deus dos ventos
5.Pólo - está por céu, como na poesia latina polus, "céu". 
 
Esta ideia de apascentar as estrelas aparece em Lucrécio:
Motibus astrorum nunc quae sit causa canamus.
... ipsi serpere possunt,
quo cuiusque cibus vocat atque invitat euntis,
flammea per caelum pascentis corpora passim. (De Rerum Natura V 509.523-525)
Do movimento dos astros agora qual seja a causa cantamos.
...eles podem então deslizar
para onde o seu alimento os chama e convida a ir,
apascentando pelo céu os flamejantes corpos por toda a parte.

E também em Virgílio, quando põe Eneias a fazer uma declaração de amor a Dido:
"In freta dum fluvii current, dum montibus umbrae
Lustrabunt convexa, polus dum sidera pascet,
Semper honos nomenque tuum laudesque manebunt,
Quae me cumque vocant terrae"... (Eneida I, 607-610)
Enquanto os rios correrem para o mar, enquanto as sombras das montanhas
forem cobrindo as várias encostas, enquanto o céu apascentar as constelações,
sempre a tua glória, o teu nome e os teus louvores permanecerão connosco,
sejam quais forem as terra que me chamem...
 
Estas estrelas estando fixadas sobre a oitava esfera são arrastadas por ela no seu movimento (c. Os Lusíadas, I,58,3).
Assim, ao longo da noite, há estrelas que nascem, outras que se põem, outras ainda que já estavam altas no céu ao começo da noite, como Camões explica no Canto IV, 67,6-8:
 
...no tempo que a luz clara
Foge, e as estrelas nítidas, que saem,
A repouso convidam quando caem,

Note-se a cuidada distincão que faz entre as estrelas:
- as que saem são as estrelas que nascem: “sair, falando das estrelas, é surgir no horizonte, começar a subir, nascer;
- as estrelas nítidas são as estrelas que nascem já noite cerrada;
- as que caem são as descem para o Poente e indicam que é já muito tarde na noite. 
As estrelas que nascem de dia não se vêem; portanto, só as que nascem de noite saem nítidas.
Camões devia ter presente esta passagem de Virgílio:
...Et jam nox umida caelo
praecipitat suadentque cadentia sidera somnos. (Eneida II,8-9).
... E já noite húmida do céu
desce e as constelações que vão declinando convidam ao sono.


Foi a análise possível da Máquina do Mundo. Mas foi sobretudo uma homenagem a este enorme Poeta que foi Camões. Ele leu os clássicos, mas também leu os Roteiros e outros livros que relatavam as inúmeras descobertas que vieram com os Descobrimentos portugueses e espanhóis. Mas também vivenciou muitos fenómenos, sofreu as amagruras da vida, saboreou as suas alegrias, participou em guerras e naufrágios. 


Tudo isso ele soube caldear com todo o seu "engenho e arte". E às vezes bastava um verso ou dois para explicar os complicados "segredos da natura" (V,22). Mas é ele próprio que reconhece todo esse seu  trabalho e experiência nuns simples quatro versos (X, 154,5-8):

Nem me falta na vida honesto estudo,
Com longa experiência misturado,
Nem engenho, que aqui vereis presente,
Cousas que juntas se acham raramente.

Na próximo post, vou referir alguns outros aspectos, nomeadamente o papel fulcral para a interpretação da epopeia que representam os cantos IX e X, que fomos habituados, na escola, a separar e até a vermos censuradas algumas estâncias consideradas demasiado eróticas, retirando-as do seu contexto.

Fontes utilizadas
Google: basta utilizar os links.
Comentários aos Lusíadas de:
- Emanuel Paulo Ramos (Porto Editora);
- Joaquim Agostinho;
- Costa Pimpão (http://cvc.instituto-camoes.pt/bdc/literatura/lusiadas/)
- Epifânio Dias.
A. GERALDO DA CUNHA, Índice Analítico do Vocábulo de Os Lusíadas
Comentário a Virgílio: Oeuvres por F. Plessis e P. Lejay (Libraiarie Hachette)
M. SANTOS ALVES, Dicionário de Os Lusíadas
R. TOSI, Dizionario delle Sentence Latine et greche